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da saúde ao assédio: a violência ginecológica no Brasil

  • aliciabgouveia12
  • Mar 25, 2021
  • 5 min read

Updated: Mar 28, 2021

por Alicia Gouvia

ALERTA GATILHO

esta reportagem foi feita em 2018 para a disciplina de Laboratório de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero


Manuela* tem 26 anos anos, olhos castanhos claro, quase beirando o mel, e estrutura óssea pequena. Apesar de parecer tímida e frágil, carrega em si tamanha força e coragem que fascinam, assim como tantas outras mulheres fascinantes que conheço. Manuela me apareceu em um grupo exclusivo para meninas no Facebook quando essa reportagem parecia não ter mais solução. A admirei desde o primeiro momento. Falar de assuntos íntimos não é fácil. Falar de assédio muito menos.


Sentadas pela primeira vez frente a frente, em seu apartamento minimamente decorado e majoritariamente branco e cinza, ela me serviu um chá. Depois de uma breve introdução, me contou que teve sua primeira consulta com um ginecologista aos 11 anos, antes mesmo de ter a menarca, a primeira menstruação. O médico era um grande amigo da família, tinha cuidado da avó, das tias e de sua mãe. Tinha sido responsável pelo seu nascimento, era o homem que a trouxe ao mundo.


Lembrou, como quem puxa na memória, que em sua primeira consulta sua mãe esteve lá a acompanhando. Para ela, o papel da matriarca era deixar o cenário menos intimidador, mais descontraído e familiar. Depois disso, acrescentou, com um sorriso triste e um olhar perdido, que em sua segunda consulta, já com 13 anos e "mocinha", quis ir sozinha. A mãe achou ótimo, as tias concordaram e a avó confiou.


Perguntei como foi aquela primeira consulta sozinha e ela paralisa por um instante em uma tentativa dolorosa de reconstituir a cena. "No primeiro momento, tudo parecia normal, sabe? Era apenas uma consulta de rotina. Depois começaram algumas perguntas que não faziam muito sentido. Mas, como eu já tinha menstruado, acreditei que as perguntas evoluíam conforme você 'passasse de fase'. Mesmo me sentindo desconfortável, só segui as ordens dele. O que eu podia fazer?" Em vã tentativa, me peguei pensando no que ela poderia ter feito.


O silêncio ensurdecedor foi interrompido por Manuela, que já não me olhava diretamente como antes. Agora, estava fixa na sua xícara de chá vazia. Sem esboçar reações, ela falava: "e os namoradinhos, Manu? Destruindo muitos corações? Já deu seu primeiro beijo? Como foi? Ele pegou na sua bunda? A mamãe já te explicou sobre sexo e como os meninos são malvados?"


Manuela contou que passando da primeira fase da consulta, quando acontece o diálogo com a paciente, o médico e ela partiram para o exame de toque. "Ele disse para eu tirar a roupa e comecei a me dirigir para o banheiro, mas ele riu. 'O banheiro está interditado. Pode tirar a roupa aqui mesmo, Manu.'"


Ela lembra que, aos 13 anos, hesitou, mas logo em seguida, mais uma vez, seguiu o comando do médico. "Eu pedi pela camisola descartável, mas ele disse que estava em falta na clínica então teria que me examinar daquele jeito, completamente nua. Não consigo dizer exatamente como me senti naquele momento. Minha psicóloga, faço acompanhamento até hoje, acredita que apaguei os detalhes da minha memória como mecanismo de autodefesa".


Perguntei se na época ela chegou a comentar com a mãe ou com alguém da família sobre o ocorrido e ela respondeu que tentou, mas ficou só na tentativa. "Depois da consulta, eu contei para minha mãe que ele tinha feito perguntas estranhas e me tocado demais. Ela não deu muito peso. Disse que as idas ao ginecologista eram daquele jeito mesmo e que o médico era muito competente".


Depois dessa consulta, aconteceram muitas outras. O médico, amigo da família e de extrema confiança, e a menina, no mesmo consultório. Certa vez ele fez um carinho a mais em sua vulva. Em uma outra, aproximou o corpo. Na próxima, estimulou seu clitóris. Na última, mostrou seu pênis.


Ilustração: Gabriel Toledo Lemos

Manuela não é um caso à parte e isolado da sociedade. O que aconteceu com ela durante toda a sua adolescência está mais perto da regra do que da exceção. Segundo uma pesquisa realizada pelo portal Catraca Livre, em 2016, cerca de 53% das mulheres entrevistadas pelo site já foram assediadas pelo seu ginecologista. As situações, contudo, não se reduzem ao abuso sexual. Tratamentos inadequados e agressivos, além de comentários humilhantes, foram, constantemente, relatados pelas vítimas.


As histórias, majoritariamente contadas em anonimato, trazem comportamentos que caracterizam condutas constrangedoras, como cantadas, frases de cunho sexual e até estupro. O cenário dos assédios ginecológicos reflete e retrata a violência de gênero e o machismo que estão enraizados na sociedade brasileira.


Assim como Manuela, muitas das entrevistadas não chegaram a denunciar seus agressores. Medo, culpabilização e silenciamento são as principais razões. Ainda segundo o levantamento do portal, apenas 4% das mulheres envolvidas na pesquisa chegaram a realizar alguma denúncia sobre o crime. Muitas, inclusive, demoraram anos para reconhecer e entender que foram vítimas de abuso sexual ou moral, enquanto outras ficaram constrangidas no momento, mas até hoje não percebem a gravidade da situação vivida.


Diferenciar a conduta ética do ginecologista de um possível caso de abuso nem sempre é fácil, especialmente em um contexto médico, no qual deveria existir uma relação de confiança entre paciente e profissional. De acordo com a psicóloga Adriana Montenegro, doutoranda em psicologia forense pela PUC São Paulo, tanto no assédio moral como no sexual a vítima é coibida. "O assédio sexual tem componentes sexuais - como o próprio nome sugere -, enquanto o moral tem como objetivo principal a humilhação e a diminuição da autoestima da vítima e não envolve, necessariamente, investidas sexuais. De todo modo, qualquer forma de assédio constrange, humilha e amedronta", ressalta a psicóloga.


Adriana frisa que se em algum momento a mulher se sentir desconfortável, deve redobrar a atenção. "Repare nos sinais vermelhos. Perceba se o médico que te atende conta piadas ou histórias de cunho sexual durante a consulta, se te olha de forma intimidadora, se pergunta sobre a sua vida amorosa de maneira excessiva. Se proíbe a presença de acompanhantes ou se pede que você tire a roupa e coloque o avental desnecessariamente".


De acordo com a psicóloga, como consequência da exposição a esse tipo de violência, muitas mulheres desenvolvem quadros de transtornos psíquicos e alimentares, como anorexia, bulimia, fobias, ansiedade, prejuízo da concentração, episódios de pânico, distúrbios do sono e depressão. No caso de Manuela, ela apagou de sua memória como se sentiu durante os assédios vividos e até hoje se considera insegura quando o assunto em questão é a sua sexualidade.


Embora cada mulher lide com a situação de maneira particular, para Adriana, o que se percebe é que neste "jogo" de poder as vítimas acabam submetidas a um estado de silenciamento e sob o domínio da autoridade de seu agressor. Por isso, a importância de que, diante de uma denúncia, essas mulheres tenham seu sofrimento e dor reconhecidos, legitimados e acolhidos.


Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, se prevalecendo de sua condição superior ou ascendência inerente ao exercício de emprego, cargo ou função é previsto na Lei 10.224 do Código Penal e no artigo 63 do Código de Ética Médica. Sendo assim, as denúncias devem ser tomadas não só na esfera do judiciário. Registrar um boletim de ocorrência e buscar condenação criminal e indenização do profissional é necessário. Além disso, um registro nos órgãos de classe - como Conselho Federal de Medicina do Brasil (CFM) e o Conselho Regional de Medicina (CRM) - deve ser feito para que os médicos sejam responsabilizados dentro do seu órgão regulador.


O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) alerta que, na maioria dos casos, o molestador adota um discurso religioso, tem entre 40 e 60 anos e é casado.


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